sábado, 12 de março de 2011

Levar droga para parente no estabelecimento penal é tráfico? Alexandre Morais da Rosa


ALEXANDRE MORAIS DA ROSA
Juiz de Direito- TJ/SC . Professor de Direito Penal  da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina e  Doutor em Direito pela UFPR.       
Em que pese tenha sido publicado em 02 de março na internet, aí vai...
Depende. Cada vez mais os trabalhos de campo estão a demonstrar que o número de mulheres encarceradas por tráfico (art. 33, caput, c/c art. 40, III, ambos da Lei n. 11.343/06), ao adentrar aos estabelecimentos prisionais, está aumentando em patamares assustadores (Thais Zanetti de Mello e Marli Modesti). O que pode parecer apenas mais uma modalidade de tráfico, quem sabe, pode ser o sintoma de uma conduta que está sendo mal avaliada por quem é incapaz de perceber o entorno da conduta, ou seja, no fundo, muitas destas mulheres não possuem escolha. Misturando cinismo com ingenuidade se diz que se eram ameaçadas não deveriam mais realizar visitas. Quem pensa assim não vive na terra! Não é tão simples assim...
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, nos autos da Apelação Criminal n. 2008.067407-4, da Capital, relator Des. Moacyr de Moraes Lima Filho, sustentou corretamente: "APELAÇÃO CRIMINAL - TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES - COAÇÃO MORAL IRRESISTÍVEL - HIPÓTESE VERIFICADA - CAUSA LEGAL DE EXCLUSÃO DA CULPABILIDADE - ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE - INTELIGÊNCIA DO ART. 386, VI, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL - RECURSO NÃO PROVIDO." Consta do corpo do acórdão a discussão sobre o dolo do agente, a saber, a sua capacidade de agir e resistir: "No mais, adota-se, como razões de decidir, devido à relevância da argumentação, os fundamentos do judicioso parecer lavrado pela Procuradoria-Geral de Justiça, na pessoa do Dr. José Eduardo Orofino da Luz Fontes: (...) É cediço que a coação moral irresistível exige a presença de elementos concretos que demonstrem de forma inequívoca ser inevitável e insuperável, a existência de ameaça de dano grave, atual e injusto. Sobre o tema, já se pronunciou a jurisprudência: "SUBSTANCIA ENTORPECENTE. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTE. COAÇÃO MORAL IRRESISTÍVEL. ABSOLVIÇÃO. TRÁFICO. COAÇÃO MORAL IRRESISTÍVEL, CAUSA LEGAL DE EXCLUSÃO DA CULPABILIDADE. ABSOLVIÇÃO. Se a prova confirma que a infeliz mãe, analfabeta e sem perspectivas e esperanças, não obrou com vontade livre e consciente no transporte do entorpecente, não sendo possível exigir-se-lhe conduta diversa eis que coactada por seu companheiro e integrantes de sua quadrilha, é de justiça reconhecer a sua submissão à coação moral irresistível imposta com ameaça de morte. Absolvição que se impõe, com fulcro nos art. 22 do CP e 386, V do CPP" (TJRJ, Apelação Criminal n. 1620/1999, do Rio de Janeiro, rel. Des. Gama Malcher, j. em 25/5/1993)."
Juarez Cirino dos Santos aponta: "O fato punível praticado sob coação irresistível é antijurídico, mas o autor pode ser exculpado por se encontrar em situação de inexigibilidade de comportamento diverso, capaz de excluir ou reduzir a dirigibilidade normativa." Paulo Queiroz sublinha no mesmo sentido e adiciona que "naturalmente que a verificação da gravidade da coação e de sua resistibilidade há de ser feita concretamente, segundo a natureza e a importância dos interesses em jogo, conforme o princípio da proporcionalidade, bem assim a capacidade de resistência do coagido, em especial sua sensibilidade..." Logo, a leitura descompromissada com a realidade pode ser a justificação de tantas mulheres estarem presas por este fundamento. A pergunta que deveria ser feita é: você acredita, mesmo, que se trata de uma conduta de tráfico?
Não se pode, assim, continuar-se a analisar o dolo pela simples conduta, desconsiderando-se o meio e as condições em que a agente se encontra inserida. Afirmar que ela poderia ter agido de modo diverso é de uma alienação de causar náuseas. Não se trata, claro, de excluir toda e qualquer responsabilidade da agente que procura inserir droga em estabelecimentos penais. O que se pretende é que se supere a noção meramente objetiva e que analisa a conduta pelos olhos de um burguês, com salários em dia, cujo parente ou companheiro não se encontra preso, muitos menos ameaçado, mas justamente de alguém que, de regra, mora em condições degradantes, sob pressão de controladores do local (líderes do tráficos, milicianos, policiais), bem assim que se usa droga dentro dos estabelecimentos penais.
De sorte que quando se demonstrar que a agente efetivamente adentrou no estabelecimento com a droga para entregar ao seu parente, ainda que tendo, em tese, cometido a conduta típica, deve ser absolvida, sob o amparo do art. 386, VI, do CPP, dado que configurada a "coação moral irresistível", prevista no art. 22 do CP. Repensar o que se faz mecanicamente não é fácil, como também não é fácil dizer não quando se está ameaçado, bem sabem os torturados de todos os dias...


Fonte: Jornal Carta Forense, quarta-feira, 2 de março de 2011

2 comentários:

  1. simplesmente um soco no olho daqueles que se fazem de cegos para os problemas sociais. Vái ser leitura na próxima semana em penal. Parabens ao alexandre pelo texto e a sentença e para você pela brilhante pesquisa. Hora de publicar ela

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  2. Eis a questão 'tempo'!
    Que os alunos - penal 1 - possam desfrutar daquilo que cega os demais, para não serem os cegos de amanhã...

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