quinta-feira, 5 de abril de 2012

Esclarecimentos à sociedade:Em relação à decisão da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, objeto da notícia “Presunção de violência contra menor de 14 anos em estupro é relativa”, esclarecemos que:

1. O STJ não institucionalizou a prostituição infantil.
A decisão não diz respeito à criminalização da prática de prostituição infantil, como prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente ou no Código Penal após 2009.

A decisão trata, de forma restrita e específica, da acusação de estupro ficto, em vista unicamente da ausência de violência real no ato.

A exploração sexual de crianças e adolescentes não foi discutida no caso submetido ao STJ, nem mesmo contra o réu na condição de "cliente". Também não se trata do tipo penal "estupro de vulnerável", que não existia à época dos fatos,
assim como por cerca de 70 anos antes da mudança legislativa de 2009.
2. Não é verdade que o STJ negue que prostitutas possam ser estupradas.
A prática de estupro com violência real, contra vítima em qualquer condição, não foi discutida.

A decisão trata apenas da existência ou não, na lei, de violência imposta por ficção normativa, isto é, se a violência sempre deve ser presumida ou se há hipóteses em que menor de 14 anos possa praticar sexo sem que isso seja estupro.

3. A decisão do STJ não viola a Constituição Federal.
O STJ decidiu sobre a previsão infraconstitucional, do Código Penal, que teve vigência por cerca de 70 anos, e está sujeita a eventual revisão pelo STF. Até que o STF decida sobre a questão, presume-se que a decisão do STJ seja conforme o ordenamento constitucional. Entre os princípios constitucionais aplicados, estão o contraditório e a legalidade estrita.

Há precedentes do STF, sem força vinculante, mas que afirmam a relatividade da presunção de violência no estupro contra menores de 14 anos. Um dos precedentes data de 1996.

O próprio STJ tinha entendimentos anteriores contraditórios, e foi exatamente essa divisão da jurisprudência interna que levou a questão a ser decidida em embargos de divergência em recurso especial.

4. O STJ não incentiva a pedofilia.
As práticas de pedofilia, previstas em outras normas, não foram discutidas. A única questão submetida ao STJ foi o estupro - conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça - sem ocorrência de violência real.

A decisão também não alcança práticas posteriores à mudança do Código Penal em 2009, que criou o crime de "estupro de vulnerável" e revogou o artigo interpretado pelo STJ nessa decisão.

5. O STJ não promove a impunidade.
Se houver violência ou grave ameaça, o réu deve ser punido. Se há exploração sexual, o réu deve ser punido. O STJ apenas permitiu que o acusado possa produzir prova de que a conjunção ocorreu com consentimento da suposta vítima. 6. O presidente do STJ não admitiu rever a decisão.
O presidente do STJ admitiu que o tribunal pode rever seu entendimento, não exatamente a decisão do caso concreto, como se em razão da má repercussão.

A hipótese, não tendo a decisão transitado em julgado, é normal e prevista no sistema. O recurso de embargos de declaração, já interposto contra decisão, porém, não se presta, em regra, à mudança de interpretação.

Nada impede, porém, que o STJ, no futuro, volte a interpretar a norma, e decida de modo diverso. É exatamente em vista dessa possível revisão de entendimentos que o posicionamento anterior, pelo caráter absoluto da presunção de violência, foi revisto.

7. O STJ não atenta contra a cidadania. O STJ, em vista dos princípios de transparência que são essenciais à prática da cidadania esclarecida, divulgou, por si mesmo, a decisão, cumprindo seu dever estatal.

Tomada em dezembro de 2011, a decisão do STJ foi divulgada no dia seguinte à sua publicação oficial. Nenhum órgão do Executivo, Legislativo ou Ministério Público tomou conhecimento ou levou o caso a público antes da veiculação pelo STJ, por seus canais oficiais e de comunicação social.
A polêmica e a contrariedade à decisão fazem parte do processo democrático. Compete a cada Poder e instituição cumprir seu papel e tomar as medidas que, dentro de suas capacidades e possibilidades constitucionais e legais, considere adequadas.

O Tribunal da Cidadania, porém, não aceita as críticas que avançam para além do debate esclarecido sobre questões públicas, atacam, de forma leviana, a instituição, seus membros ou sua atuação jurisdicional, e apelam para sentimentos que, ainda que eventualmente majoritários entre a opinião pública, contrariem princípios jurídicos legítimos.

4 comentários:

  1. O início de tudo:
    Estadão.com.br
    Ministra usa tese de que o direito precisa se ‘adequar às mudanças sociais’ e inocenta homem que violentou três meninas de 12 anos
    31 de março de 2012 | 17h 10
    Ainda estou para entender o que os magistrados brasileiros descrevem como “realidade”. Muito antes da pós-modernidade, essa palavra provocava tremores nos cientistas sociais. A realidade depende de quem a descreve e, mais ainda, de quem experimenta sua concretude na própria pele. A tese de que o Direito precisa se “adequar às mudanças sociais” foi a sustentada pela ministra do Superior Tribunal de Justiça Maria Thereza de Assis Moura para inocentar um homem adulto que violentou sexualmente três meninas de 12 anos. Não haveria absolutos no direito penal, defendeu a ministra, pois os crimes dependem da “realidade” das vítimas e dos agressores. Foram as mudanças sociais que converteram as meninas em prostitutas ou, nas palavras da ministra Maria Thereza, “as vítimas, à época dos fatos, lamentavelmente, já estavam longe de serem inocentes, ingênuas, inconscientes e desinformadas a respeito do sexo”.


    Ascom/STJ
    Maria Thereza. Não há absolutos no direito penal. Crimes dependem da ‘realidade’ vítima e agressor

    “Já estavam longe” foi um recurso discursivo que atenuou o sentido imperativo do julgamento moral da ministra sobre as meninas. Uma forma clara de traduzir seu pronunciamento sobre o caso é ignorar a atenuante e reler os adjetivos por seus antônimos. “As meninas eram culpadas, maliciosas, conscientes e informadas a respeito do sexo”, por isso não houve crime de estupro. Para haver crime de estupro, segundo a tese da ministra, é preciso desnudar a moral das vítimas, mesmo que elas sejam meninas pré-púberes de 12 anos. O passado das meninas - cabuladoras de aulas, segundo o relato da mãe de uma delas, e iniciadas na exploração sexual - foi o suficiente para que elas fossem descritas como prostitutas. Apresentá-las como prostitutas foi o arremate argumentativo da ministra: não houve crime contra a liberdade sexual, uma vez que o sexo teria sido consentido. O agressor foi, portanto, inocentado.

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  2. Descrever meninas de 12 anos como prostitutas é linguisticamente vulgar pela contradição que acompanha os dois substantivos. Não há meninas prostitutas. Nem meninas nem prostitutas são adjetivos que descrevem as mulheres. São estados e posições sociais que demarcam histórias, direitos, violações e proteções. Uma mulher adulta pode escolher se prostituir; uma menina, jamais. Sei que há comércio sexual com meninas ainda mais jovens do que as três do caso - por isso, minha recusa não é sociológica, mas ética e jurídica. O que ocorria na praça onde as meninas trocavam a escola pelo comércio do sexo não era prostituição, mas abuso sexual infantil. O estupro de vulneráveis descreve um crime de violação à dignidade individual posterior àquele que as retirou da casa e da escola para o comércio do sexo. O abuso sexual é o fim da linha de uma ordem social que ignora os direitos e as proteções devidas às meninas.


    Meninas de 12 anos não são corpos desencarnados de suas histórias. As práticas sexuais a que se submeteram jamais poderiam ter sido descritas como escolhas autônomas - o bem jurídico tutelado não é a virgindade, mas a igualdade entre os sexos e a proteção da infância. Uma menina de 12 anos explorada sexualmente em uma praça, que cabula aulas para vender sua inocência e ingenuidade, aponta para uma realidade perversa que nos atravessa a existência. As razões que as conduziram a esse regime de abandono da vida, de invisibilidade existencial em uma praça, denunciam violações estruturais de seus direitos. A mesma mãe que contou sobre a troca da escola pela praça disse que as meninas o faziam em busca de dinheiro. Eram meninas pobres e homens com poder - não havia dois seres autônomos exercendo sua liberdade sexual, como falsamente pressupôs a ministra.


    O encontro se deu entre meninas que vendiam sua juventude e inocência e homens que compravam um perverso prazer. Sem atenuantes, eram meninas exploradas sexualmente em troca de dinheiro.


    Qualquer ordem política elege seus absolutos éticos. Um deles é que crianças não são seres plenamente autônomos para decidir sobre práticas que ameacem sua integridade. Por isso, o princípio ético absoluto de nosso dever de proteção às crianças. Meninas de 12 anos, com ou sem história prévia de violação sexual, são crianças. Jamais poderiam ser descritas como “garotas que já se dedicavam à prática de atividades sexuais desde longa data”. Essa informação torna o cenário ainda mais perverso: a violação sexual não foi um instante, mas uma permanência desde muito cedo na infância. Proteger a integridade das meninas é um imperativo ético a que não queremos renunciar em nome do relativismo imposto pela desigualdade de gênero e de classe. O dado de realidade que deve importunar nossos magistrados em suas decisões não é sobre a autonomia de crianças para as práticas sexuais com adultos. Essa é uma injusta realidade e uma falsa pergunta. A realidade que importa - e nos angustia - é de que não somos capazes de proteger a ingenuidade e a inocência das meninas.
    * Debora Diniz é professora da UNB e Pesquisadora da Anis: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero

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    1. Cara Taís,
      Maravilhoso este pequeno ensaio. Um alento ver tão brilhante defesa de argumentação para as crianças permanentemente marcadas. Em nosso país e em qualquer outro.

      Maria Cristina

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  3. Maria Cristina,

    interessante a resposta à sociedade realizada pelo STJ, pois sem ela houve muita discussão e distorções sobre esta questão!
    Essas coisas devem ser partilhadas e discutidas, merecem destaque.
    Abraço

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